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Mortes e sequelas: pais relatam sofrimento vivido após internação de filhos no Hmisc e clamam por respostas

Pais acusam Hospital Materno-Infantil por negligência e falta de amparo no cuidado de crianças
Mortes e sequelas: pais relatam sofrimento vivido após internação de filhos no Hmisc e clamam por respostas
Foto: Thiago Hockmüller/Portal Engeplus
Por Thiago Hockmüller Em 05/10/2023 às 19:50

“Eu vim aqui para levar o meu filho embora, não para levar em um caixão”. O depoimento é de Vanuza Biff Fernandes, mãe do pequeno Samuel, broncoaspirado enquanto estava internado no Hospital Materno-Infantil Santa Catarina (Hmisc), em Criciúma. O lamento de Vanuza e do marido dela, Valdinei Vargas Cristão, é um entre inúmeras acusações da falta de cuidado e humanização no hospital, que é responsável por mais de seis mil atendimentos por mês em seus pronto-atendimentos e tem capacidade para realizar cerca de 300 partos mensais.

Além de justiça para o próprio caso, ocorrido em julho deste ano, o casal implora por soluções para que outras famílias não sofram a mesma tragédia que aconteceu com o seu filho de apenas 1 ano e 11 dias. “Não podemos mais aceitar esse tipo de coisa que está acontecendo com as crianças. Tem criança saindo morta pela falta de cuidado adequado, por negligência. Estamos indignados. Meu filho não é um número, meu filho morreu broncoaspirado por falha deles. Queremos respostas e que as pessoas entendam que se não nos unirmos agora, isso não vai parar de acontecer”, desabafa Vargas.   

Jéssica Bruna Nunes Inez, 26 anos, também clama por respostas. O filho dela, Dominic Nunes, foi internado no hospital quando tinha 9 meses, sob o diagnóstico de bronquiolite em estágio inicial. A entrada da internação aconteceu às 14 horas de um sábado, mas no domingo, a mãe relata que a criança estava praticamente sem vida. Hoje, com 1 ano e 1 mês, Dominic precisa de sonda para se alimentar e o diagnóstico ortopédico indica pouca possibilidade de que ele retorne a andar. E somente agora ele tem reagido aos estímulos feitos pela mãe. 

“Ele nasceu perfeito. Engatinhava, andava por tudo no andador. Passamos a noite aqui e no outro dia foi ficando pior. Quando os médicos vieram olhar ele e levá-lo para fazer outros procedimentos, já era muito tarde. Estava praticamente sem vida”, relata Jéssica.

Dominic teve duas paradas cardíacas e deixou o hospital com sequelas. A mãe culpa o Hmisc de negligência e busca justiça para que a instituição, administrada pelo Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde (Ideas), arque com o custo dos tratamentos. O Ideas é a empresa contratada pelo Governo do Estado para administrar o hospital. 

Confira o relato do casal e de Jéssica:

Eram cinco, agora são 20

As denúncias são recebidas pela comissão de ouvidoria do Conselho Municipal de Saúde de Criciúma. Segundo dados fornecidos pelo órgão, o que começou com cinco notificações, agora está em 20, 60% delas envolvem óbitos e 40% são crianças que ficaram com algum tipo de sequela após o tratamento no Hmisc. 

Julio Zavadil, presidente do conselho, pede intervenção do Ministério Público (MP) e cobra respostas do Ideas. Ele afirma que algumas das notificações já possuem, inclusive, boletim de ocorrência registrado na Polícia Civil e que o número de denúncias contra o hospital seria maior, porém, há famílias com medo de exposição.

“Todas estas pessoas estão junto com a comissão de ouvidoria. Existem outras que estão nos procurando dizendo o que aconteceu com elas, mas que não tem coragem de se manifestar por medo de represália, que tem filho ou neto que pode ser prejudicado ao vir para o hospital. O que eu digo é que quanto mais gente tiver, melhor para mostrar a realidade. São 20 notificações conosco, essas mães já fizeram por escrito e também boletim de ocorrência na polícia. Vamos apresentar os relatórios com dados oficiais e com as mães que vão aceitar aparecer, porque muitas têm medo de aparecer”, afirma.

O presidente do conselho diz que uma reunião virtual aconteceu na segunda-feira, dia 2, porém sem participação de representantes do MP, do Comitê de Mortalidade Infantil e do Governo do Estado, todos previamente convidados. O Ideas participou, mas não teria dado justificativas suficientes para esclarecer os problemas relatados contra a instituição. 

“Viemos cobrar do hospital a humanização no atendimento destas pessoas, queremos que tenham o número de profissionais adequados. Não é apenas estadualizar e dar estrutura física, que não é ruim. Precisamos de número de trabalhadores, de médicos, de enfermeiros e técnicos. O que precisa neste caso é um pouco de respeito. Teve uma mãe que se juntou a nós e teve a perda do bebê em função de um diagnóstico que fizeram e depois viram que era outra coisa, que precisava de um nefrologista que não tinha e precisava de diálise e hemodiálise, que segundo a mãe também não tinha no momento e nem tinha como transferir porque o caso já era grave”, afirma Zavadil. 


Pais e familiares de pacientes do Hmisc pedem justiça. (Foto: Thiago Hockmüller/Portal Engeplus)

O caso citado por ele é referente a pequena Jordana Dias Pereira, de 2 anos e 7 meses, que morreu no dia 27 de setembro deste ano. Edimar Dias dos Santos é irmão de Jordana e endossa o pedido por respostas, justiça e mudanças no hospital. A família procurou o Hmisc após a criança apresentar sintomas de diarreia e vômito. 

“Sem fazer qualquer exame, deram diagnóstico de virose, receitaram os medicamentos e nos liberaram. Fizemos o tratamento e o problema persistiu. Retornamos no sábado de madrugada e tentaram dar alta novamente, insistindo que era virose. Não aceitamos e dissemos que só sairíamos daqui caso examinassem ela”, explica Edimar.

Segundo o irmão de Jordana, os profissionais do Hmisc mantiveram o diagnóstico e somente após a realização de exame de sangue que foi informado o verdadeiro problema. “Descobriram que ela tinha síndrome hemolítico-urêmica, os rins dela estavam parados e ela precisava de hemodiálise. Aqui ela nunca teve acesso a hemodiálise. Chegou aqui caminhando, falando e foi entubada após ficar inchada. Não tendo acesso aos recursos foi à óbito após uma semana. Por que não fizeram um exame simples de sangue na primeira vez que ela esteve aqui? Por que não disseram que o hospital não tinha recursos para a gente levar em outro lugar?”, questiona. 

Confira o vídeo:

Era apenas uma consulta de rotina

Gabriel Kennety Cardoso Vieira e Maria Eduarda da Silveira são pais de Rhuan Kennety, que entrou no hospital no dia 27 de abril para uma consulta de rotina, acabou internado e morreu quatro dias depois, pouco antes de completar dois meses de idade. “Pedimos o laudo e não nos deram ainda. Mandaram esperar. Falaram que foi uma parada respiratória”, informa Maria Eduarda. 

Os pais relatam que durante a consulta foi identificado um problema na respiração de Rhuan, com prescrição de urgência para atendimento. A criança passou por exame de raio-x, lavagem nasal e recebeu medicamentos. “Então começou a piorar e fiquei esperando atendimento das 15 até as 19 horas. Reclamei com a médica e então fomos atendidos. O pediatra disse que era bronquiolite, sem diagnosticar. Já estava na hora de se alimentar, colocaram a sonda, ele começou a piorar e o entubaram”, afirma. 

Com a gravidade do quadro e a criança submetida à Unidade de Terapia Intensiva (UTI), o casal se viu impossibilitado de acompanhar o menino. Entre a internação na UTI e a notícia da morte, eles contam que tiveram autorização para três visitas. “Um dia antes de falecer, deu parada respiratória e ninguém viu. Ela [Maria Eduarda] foi atrás deles para buscar atendimento. Depois fizeram oxigênio e ele começou a melhorar. Durante a noite aconteceu a mesma coisa, mas estavam poucas pessoas para atender. Foi chamado o médico. E na segunda-feira ele faleceu. A pergunta é o que aconteceu? Será que teve outra parada cardiorespiratória e ninguém viu?”, questiona o pai.

Faltou o exame

Anderson Roberto Ribeiro de Marques perdeu a filha recém-nascida, Ana Clara de Jesus. Durante o pré-natal, realizado todo no Hospital Materno-Infantil Santa Catarina, descobriram um problema no coração de Ana Clara. Sem clareza no diagnóstico, o Hmisc realizou exame e recomendou novo procedimento em data próxima ao parto. Mas este exame não foi oferecido pelo hospital, conforme argumenta Ribeiro.  

“Ao invés de fazer aqui, nos encaminharam para o nosso município (Içara), para o nosso município nos encaminhar para Florianópolis. A nossa indignação é: por que não fizeram aqui se tinham o exame para fazer? A gente mora em Içara, mas já estava fazendo pré-natal aqui porque era [gestação] de risco. Em Içara só deram a liberação do exame depois que ela tinha nascido, que daí foram ver o real problema”, lamenta.

Confira o relato:

Questionamentos sem respostas

Tínhamos cinco mães que nos procuraram, três com mortes e duas com sequelas. Hoje são mais de 20, entre mortes, problemas graves e sequelas. Precisamos que o hospital dê esse respaldo e mostre os números. O hospital vai ao conselho pedir recursos e a gente nunca nega porque entende que são necessários e tem que passar pela aprovação do conselho. Depois que são liberados os recursos, não somos recebidos aqui. Estávamos há dois anos pedindo reuniões mensais com o hospital e eles sempre dando desculpas para não nos receber.

Presidente do Conselho Municipal de Saúde, Julio Zavadil
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No último dia 26, o diretor-geral do Hmisc, César Augusto de Magalhães, usou a tribuna da Câmara de Vereadores e afirmou que não pode dar detalhes sobre os prontuários médicos, usando como argumento a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Segundo o Conselho Municipal de Saúde, a diretoria do hospital marcou para o dia 10 nova reunião, porém solicitou a participação de apenas quatro dos oito conselheiros.

Em nota para a imprensa, o Hmisc diz que uma reunião foi realizada no dia 2 de outubro, com a participação do conselho e de mães dos pacientes do hospital. Porém, durante protesto na manhã desta quinta-feira, dia 5, em frente à instituição, as mães negaram participação no encontro. 

Diante da gravidade das denúncias e da falta de clareza nas respostas do Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde (Ideas), empresa que administra o Hmisc, o Conselho Municipal de Saúde não descarta deliberar contra a permanência do Ideas, ação já realizada contra o Instituto de Saúde e Educação Vida (Isev), que era o administrador do Materno-Infantil antes do Ideas assumir a gestão em 2017.


Diretor do Hmisc foi ouvido durante sessão na Câmara de Vereadores. (Foto: Divulgação/Câmara de Vereadores de Criciúma)

“O conselho já fez diversas denúncias, inclusive contra a gestão do Isev, que caiu em função do trabalho realizado pelo conselho quando mostramos o que estava acontecendo. Agora estamos com problemas com o Ideas e não podemos nem questionar as contas porque não são nem apresentadas ao conselho. Tem uma comissão de avaliação e fiscalização que tem apenas um representante e nem adianta se manifestar contrário porque é voto vencido. Vamos ver até onde a gente chega com isso”, pondera o presidente do Conselho Municipal de Saúde, Julio Zavadil.

O presidente do conselho afirma que seguirá cobrando posicionamento do MP e que o movimento seguirá organizado em busca de respostas. Entre os casos notificados, já existem famílias entrando com processo judicial contra o Hmisc. "Vamos juntar as mães e pegar o relato com a comissão de ouvidoria do conselho. Vamos fazer um relatório e levar para encaminhamento, que é buscar o MP, que solicitamos para estar na reunião de segunda-feira e não se fez presente. É prerrogativa do MP investigar isso aqui e a gente quer que faça isso. Não vamos parar com os movimentos, vamos nos organizar para que os problemas não continuem”, argumenta.

Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) afirma que a taxa de mortalidade infantil no Hmisc é de 0,99, enquanto a média no Brasil é de 1,7. E que a secretaria não foi convidada para a reunião da última segunda-feira. Confira o posicionamento da SES:

"A Secretaria de Estado da Saúde (SES) informa que todos os casos de óbito são analisados nos Comitês Internos do Hospital e os indicadores do Hospital são acompanhados pela SES e pela Comissão de Avaliação e Fiscalização do contrato de gestão. Nos casos onde seja observada uma situação fora dos índices normativos, a SES, através da Vigilância Sanitária e o Conselho Regional de Medicina (CRM) realizam a investigação do caso para que as providências cabíveis sejam adotadas. Ressaltamos que o Hospital Materno-Infantil Santa Catarina possui uma taxa de mortalidade infantil de 0,99 - enquanto a média no Brasil é de 1,7".

A reportagem também buscou o posicionamento da Secretaria Municipal de Saúde de Criciúma, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Abaixo, confira a nota no Ideas:

"Informamos que no dia 2 de outubro foi realizada uma reunião que contou com a participação do Conselho Municipal de Saúde de Criciúma, mães de pacientes e o Instituto.

No entanto, como já informado anteriormente, os casos levados a conhecimento já foram analisados tecnicamente, sendo que maiores informações não podem ser fornecidas, tendo em vista o sigilo dos dados".